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Pedro Proença ~ A arte ao microscópio


desenho gráfico de João Bicker
capa de Pedro Falcão sob ilustração do autor
ilustrações de Pedro Proença
Fenda 2000
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Ergo os braços e contorço-me espreguiçando-me. Não há ninguém em volta para ver. Também não há nada para ver. A preguiça prepara o ócio, é o seu couvert, o seu aperitivo. Não a preguiça como fuga à acção, mas a preguiça como o prazer da imobilidade, do estar quieto no seu cantinho.
Há em Matisse uma celebração perpétua da preguiça. Quando mudamos de registo e passamos, por exemplo, para um Pollock, entramos noutro mundo no qual não podemos viver sem ansiolíticos.
Esta preguiça essencial é hoje uma resistência, isto é, uma urgência.
Dizia Nitzche que o pensamento era pedestre, ou que assim se tornava propício. Mas o romancista não dispensa o conforto da cadeira. Ele não vê o mundo de uma forma profética ou genealógica, mas encosta-se confortavelmente e deixa que as coisas comecem a tomar forma, se encadeiem e desapareçam consumada a escrita. A cadeira é o pilar do romanesco, porque o romanesco não consiste em ideias, mas em deixá-las assentar até se tornarem irreconhecíveis entre a multidão de acontecimentos.
Também a pintura requer que o traseiro caia em algum lado. É claro que se pode pintar de pé ou aos pulos, mas prefiro sentar-me no chão de pernas cruzadas, mesmo que isso me custe dores nas costas. Não sei de onde esse hábito me vem, se há em mim uma costela oriental ou africana, mas já na escola e no liceu era de uso sentar-me de pernas cruzadas sobre a cadeira, escondendo esta posição com o tampo da mesa. É exactamente aquilo que estou agora a fazer.