...editora fenda... fenda edições, 30 anos no arame

Lysander Spooner ~ Insultos a chefes de estado


tradução de Miguel Serras Pereira
desenho gráfico de Mário Feliciano
Fenda Luminosa 5
colecção dirigida por Vasco Santos
Fenda 1999
[1000 ex]

Segundo os princípios gerais do direito e da razão, as dívidas contraídas em nome dos «Estados-Unidos» ou do «povo dos Estados-Unidos» não tem a menor validade. É totalmente absurdo pretender que dívidas de um montante de dois mil e quinhentos milhões de dólares pesam sobre trinta e cinco ou quarenta milhões de homens quando não há a sombra de uma prova legítima - como a que seria exigida para autenticar uma dívida privada - que possa ser exibida diante de alguns deles para mostrar que esse homem, ou o seu representante devidamente autorizado, tenha alguma vez subscrito um contrato que o obrigue a pagar um cêntimo que seja.
É certo que nem o povo dos Estados-Unidos no seu conjunto nem qualquer parte deste povo alguma vez subscreveu separada ou individualmente um contrato que o obrigue a pagar um cêntimo que seja dessas dívidas.
É igualmente certo que nem o povo dos Estados-Unidos no seu conjunto nem qualquer parte desse povo se constituiu alguma vez, por meio de um contrato manifesto, escrito ou de outra forma autenticado e voluntário, numa firma, pessoal moral ou associação chamada «os Estados-Unidos» ou «o povo dos Estados-Unidos», autorizando os agentes dessa associação a contrair dívidas em seu nome.

Lysander Spooner ~ Os vícios não são crime


tradução de Miguel Serras Pereira
desenho gráfico de Mário Feliciano
Fenda Luminosa 6
colecção dirigida por Vasco Santos
Fenda 1999
[1000 ex]

Um governo que punisse todos os vícios de maneira imparcial é segundo toda a evidência de tal maneira impossível que nunca se viu, nem verá, uma pessoa tão estúpida que o propusesse. O máximo que se pode propor é que o governo puna um vício ao acaso, ou quando muito alguns, ou aqueles que considera mais repugnantes. Mas trata-se de uma discriminação totalmente absurda, ilógica e tirânica. Que direito pode ter seja que grupo de homens for a dizer: "nós puniremos os vícios dos outros homens; mas ninguém punirá os nossos próprios vícios. Nós limitaremos os outros homens na aquisição de qualquer conhecimento experimental conducente, ou necessário, à sua própria felicidade; mas a nós, ninguém nos limitará na nossa aquisição de um conhecimento experimental conducente, ou necessário, à nossa própria felicidade"?
Só os ingénuos e os imbecis podem ter a ideia de proceder a suposições semelhantes. E, no entanto, segundo toda a evidência, só suposições semelhantes podem permitir a quem quer que seja reclamar o direito de punir os vícios de outrem e proclamar, ao mesmo tempo, a impunidade dos seus próprios vícios.

Manuel da Silva Ramos ~ Jesus - The last adventure of Franz Kafka


design gráfico de João Bicker / FBA
composição de Milton Siquenique
Fenda, 2002
[? ex]
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Agora Kafka passeava-se de trela com o Vagabundo, que de pé ou a quatro patas usava açaimo de arame na boca relutante.
Tinha sido um escândalo terrível a primeira vez que aparecera com ele nesse estado.
Para que a festa fosse verdadeiramente grande tinha sido o Caminho Real que ele utilizara - assim a coroação seria o cúmulo do regozijo, o apogeu da cumplicidade.
Kafka nunca vira tanto rancor estampado na cara das pessoas. Tanto desejo de rir a bandeiras despregadas - continham-se os brutos.
Começou pois a peregrinação iniciática - à procura da verdadeira identidade dele e dos outros. Saíram das escadas do Museu Nacional e começaram a descer a praça Venceslau.
Diante duma árvore estava um soldado a ler um jornal e logo que os viu entrou em pânico.
Pôs-se a amachucar o jornal - até ele formar uma bola inchada.
Depois deitou-a para o chão e começou a pisá-la furiosamente. Kafka que normalmente era calmo e sossegado, mais doce que um carneirinho, começou a encher-se de nervos.
Quanto ao outro representava o seu papel duma maneira fixativa: era um cão ponderado.
Mais abaixo viu-os Jakobson do último andar do Grande Hotel Europa onde assomara a uma janela para fumar um cigarro americano.

Manuel da Silva Ramos ~ adeusamália


desenho gráfico de João Bicker
Fenda Luminosa 18
colecção dirigida por Vasco Santos
Fenda, 1999
[1100 ex]
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Lembro-me da Amália a cantar «Lisboa, não sejas francesa».

Lembro-me do campeão de xadrez Joaquim Durão.

Lembro-me do Omo, lava mais branco.

Lembro-me do «Cavaleiro Andante».

Lembro-me da caneta Parker 61.

Lembro-me do Sonasol, o sabão da lavadeira.

Lembro-me da Amália a cantar no «ABC» em Paris.

Lembro-me das máquinas para coser Singer.

Lembro-me das pastilhas Rennie.

Lembro-me do duplo caldo de galinha Star.

Ana de Sá ~ Da vida dos papas


capa de João Bicker
3ªed, Fenda, 1990
[500 ex]
2ªed, Fenda, 1982
1ªed, Lua Vaga, 1980
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Se a corte de uma ovelha necessita de, pelo menos, dois metros quadrados, três o cortelho de um porco, quase quatro o quarto de dormir de um cavalo, qual o tamanho que deverá ter o futuro barretinho branco dos bispos?
Se um cão vive nove anos, uma égua três cães, um homem três cavalos, quanto tempo durará o futuro barretinho dos bispos?
Se o canário tem catorze dias de gestação, as galinhas vinte e um, quarenta os papagaios, cento e oito um leão, quanto tempo levará a fazer o futuro barretinho redondo dos bispos?
A este barretinho, redondo e liso, será dado o nome de solidéu.
De Bispo que não fale latim ou solidéu que esteja roto, Libera nos Domine...