...editora fenda... fenda edições, 30 anos no arame

Pierre Mabille ~ O Maravilhoso


precedido de Liberdade Absoluta, de Luc de Heusch
tradução de Judite Berkemeier
ilustração da capa de Pedro Homem de Mello
Fenda 1990
[500 ex]

O homem é um momento no tempo, a sua vida é uma trajectória refulgente entre duas praias negras, o passado e o futuro; faísca viva semelhante ao fósforo que se acende na opaca escuridão; faísca que une duas noites, uma onde nasceu a paixão entre dois corpos, a outra, de silêncio, com a sua grande pausa musical: a Morte.
Mas, observando mais de perto, esta trajectória não é assim tão simples. Primeiro, no início, é o impulso progressivo, como o desabrochar do rebento, todas as potencialidades presentes, virtuais, desprendem-se umas atrás das outras num emaranhado de espirais: o coração que bate no embrião marinho, o sopro à nascença, os olhos que se abrem, as mãos e os pés que se fortalecem, o vigor que acorda, o ser completo.
O fim, também ele por ondas decrescentes, o fim que me faz sempre lembrar o encerramento metódico de uma sala de espectáculo: cala-se a orquestra das paixões, cobrem-se as calvas cabeças, cobrem-se as nuas gengivas, apaga-se a luz no cérebro enquanto abrandam os últimos ecos, a última sístole, como um interruptor que se descliga. Lá fora, a noite...
No cimo da curva, orgulhosamente virado para o horizonte da sua acção, em pleno meio-dia de sombras cruas, entre o prazer e a dor o homem, angustiado, observa a estrada. Do passado, esfumam-se as imagens, algumas silhuetas de renda dançam entre esqueletos de enforcados na praça dos milagres de séculos. No caminho do futuro, um espaço sem rosto cujos escassos vislumbres têm menos consistência que fogos fátuos ao emergir dos pegos e dos juncos para enganar o viajante.

Benjamin Péret ~ O Quilombo de Palmares


revisão de Júlio Henriques
prefácio de Ruy Coelho
direcção gráfica de João Bicker
Fenda 1988


Os primeiros negros instalados nos Palmares devem ter lavrado a terra em comum. A necessidade de fazer face a um afluxo constante de fugitivos obrigava esses primeiros cultivadores a colectivizar os recursos do mocambo. Os brancos não cessaram, durante cinquenta anos pelo menos, de destruir as colheitas dos negros, a fim de os reduzir pela fome e de abater a sua combatividade. Porém, essas incursões repetidas não podiam ter outra consequência senão aumentar a solidadiedade interna de cada mocambo e de toda a população dos Palmares. Imaginemos, com efeito, que as culturas de um mocambo tenham sido devastadas. Como admitir por um instante que o quilombo vai abandonar os habitantes do povoado sacrificado? Seria enfraquecer duplamente o conjunto dos Palmares: em primeiro lugar porque a aldeia abandonada à sua sorte se tornaria incapaz de sustentar um novo assalto dos brancos. Antes de ser reduzido a tal extremo, esse mocambo tentaria aliás uma expedição contra os brancos, cujo resultado - fora as vantagens que os assaltantes dela pudessem tirar - seriam novas represálias dos brancos, que não atingiriam forçosamente o mocambo assaltante. E não é só. Essa ausência de solidariedade revelaria uma falta de previdência, pois a desgraça que atingiria essa aldeia poderia atingir outra no dia seguinte. Os brancos não teriam mais do que atacar cada povoado isoladamente para vencer com segurança e em pouco tempo. Ora, sabemos que foram precisos cinquenta anos para destruir os Palmares.

Antero de Quental ~ A Poesia na Actualidade


prefácio de Júlio Henriques
capa de João Bicker
Fenda 1988

Filha da pura intuição, por um processo espontaneo e verdadeiramente instinctivo, a producção das linguas e dos mithos cessa no momento em que a primeira reflexão acorda no espirito humano, e é justamente nesse momento que a poesia apparece. Ella representa o periodo de transição entre a pura espontaneidade e a reflexão pura, entre o dominio absoluto da synthese e o dominio absoluto da analyse.
A especulação metaphisica, a theologia e a poesia caracterisam essa phase intermedia do desenvolvimento psycologico e racional da Humanidade.
Em todos tres a materia é já um producto do pensamento reflectido, da analyse mais ou menos consciente, senão intencional e systematica: em todas tres tambem é a synthese que dá a forma, é a intuição immediata que liga entre si e reduz a uma unidade concreta, por uma força plastica e como que organica, aqueles elementos de origem diversa.

Alberto Pimenta ~ Obra Quase Incompleta


capa João Bicker
fotografias de Fernando Aguiar, Paulo Aguiar
Kurt Paulus, Arianna Giorgi, Gabriele Brustoloni
Victor A. Moreno, Garcia Poveda
Fenda 1990
[1000 ex]


ligação

a palavra repousa de olhos semicerrados
encoberta por um véu deixando entrever
uma mama: o poeta aproxima-se tenta ma
mar. a palavra estremece abre os olhos.
o poeta afasta-se de um golpe tropeça
cai sentado. a palavra percorre-se com
as mãos a ver se está intacta. fica
pensativa os dedos enfiados nas tranças
brincando. o poeta aproxima-se então por
trás. agarra a palavra pela cinta. ela
tenta furtar-se ao contacto. caem. rolam
por terra. a palavra continua a debater
se. o poeta mete um dedo na vulva da
palavra. a palavra torce-se toda. depois
acalma. o poeta mete outro e outro de
do ainda, retira um hífen todo molha
do. a palavra cai ofegante. o poeta a
fasta-se com um sorriso mete o hífen a
o bolso e publica-o com uma palavra
sua na capa


carta a uma iniciante

daqui
donde estou
só posso dizer-te: aprende
as melhores maneiras.
passa as mãos por ti, mete os dedos
em todas as tuas entradas e saídas,
só assim as aprenderás
as melhores maneiras,
ou julgas que
facilmente encontrarás
quem tas ensine?

repara
como todos
te querem ensinar
as boas maneiras
mas já alguém te
falou das melhores?
já alguém
te deu a conhecer
e a cheirar
os caminhos da tua glória?

cuida-os,
dá-lhes toda a atenção enquanto
é tempo,
não te afastes nem te prives
do que és tu, do que tu és,
aproveita
bem o tempo antes que
comece o passado
a parecer-te
mais longo que o possível futuro
e tu
comeces
a cheirar daquele modo
que agrada e sobretudo atrai
a deus, o amador de cadáveres.

Bernard Noël ~ Extractos do Corpo


tradução de Laura Lourenço e Marc-Ange Graff
capa de João Bicker
Fenda 1997


No princípio, o olho visitou a medula, e eu nasci. Um sexo emergiu no oposto do olho para ver o tempo, e, devagar, a medula fiou um novelo de nervos à volta do qual escorreram as horas. E houve o ventre. Então a água teve sede de se pegar, e condensou a pele. O mole gerou o seu contrário, e apareceu o osso. Houve um dentro e houve um fora, mas o dentro continha o seu próprio fora que dizia mim enquanto o outro dizia eu. O olho pô-los às escuras e virou-se para o fora-fora. Eu tive um rosto, um volume, um corpo. Fui um cheio, que ia sempre para frente. Mas o meu olho inverteu-se. Agora, vejo para trás, agora sou oco, e o meu corpo terá de ser recriado.

(...)

Da barriga à garganta, esticou-se o espaço. A pele cresceu. Atado a mim mesmo, sugo o meu interior, esvazio-me em mim. Mais tarde, o osso vertebral mineraliza as articulações todas. O olhar gela. O sangue porém voltará a subir pelas represas arteriais, e fará crescer na pele o fungo cor-de-rosa dum sorriso. Ser eu continua a ser parte da essência do eu.

Ángel González ~ Tratado de Urbanismo


tradução de Helder Moura Pereira
capa de João Bicker/FBA
Fenda 2001


Canção de Inverno e de Verão

Quando é inverno no Mar do Norte
é verão em Valparaíso.
Os barcos fazem soar as suas sirenes ao entrar no
porto de Bremen com bandeiras de névoa e de
gelo nos seus cabos,
enquanto as balandras batidas pelo sol arrastam pela
superfície do Pacífico Sul belas banhistas.
Isso sucede ao mesmo tempo,
mas jamais no mesmo dia.
Porque quando é dia no Mar do Norte
- brumas e sombras absorvendo restos
de uma suja luz -
é noite em Valparaíso
- rutilantes estrelas lançando afiados dardos
às ondas adormecidas.

Como duvidar de que nos quisemos,
que me perseguia o teu pensamento
e a tua voz me procurava - por trás,
muito perto, ia a minha boca.
Quisemo-nos, é certo, e eu não sei quanto:
primaveras, verões, sóis, luas.

Contudo jamais no mesmo dia.

Juan Luis Panero ~ Antes que chegue a Noite (antologia)


versões de António Cabrita e Teresa Noronha
prefácio de António Cabrita
capa de João Bicker/FBA
Fenda 2001


Na manhã seguinte Cesare Pavese não pediu o pequeno almoço

Logo que desceu do comboio,
só, atravessou a cidade deserta,
entrou sozinho no desocupado hotel,
franqueou a porta do quarto individual,
e escutou com assombro o silêncio.
Dizem que levantou o auscultador
para chamar alguém
mas é falso, completamente falso.
Como se houvesse alguém a quem chamar -
ninguém vivia na cidade, ninguém no mundo.
Ingeriu a água, as pequenas drageias,
e esperou a chegada do sono.
Com um certo receio pela sua saúde -
tinha pela primeira vez firmado a sua existência -,
talvez curioso, com amolecidos gestos,
sentiu chegar o peso das pálpebras.
Horas depois - um enigmático sorriso
desenhava-lhe os lábios -
a si mesmo anunciou, convictamente,
a única certeza que no fim tinha adquirido:
jamais voltaria a dormir só um quarto de hotel.

Joelle Ghazarian ~ Sakarina


desenho de Rémi Baudier
maquete de Júlio Henriques
colecção A parte Maldita 2
(texto em francês)
Fenda 1983


Installer la vie dans un petit fauteuil, un petit soleil de miroirs, une encyclopédie sans failles. Ordonner la préparation d'une conjoncture, d'une miniscule musique, d'un épisode crépitant. Le feu vert au décor: la paille ne fait que fumer et des volutes d'ombre nous épaississent, nous saississent dans notre séparation sans nous rendre à notre dualisme. L'éphémère est un sport qui fait mal. La moto aussi. Le triomphe s'arc-boute sur ses moignons, il s'épuise dans le contre-plaqué. Il est défiguré, et pourtant il est bestialement toujours présent, à faire croire qu'il a oublié le souvenir des médailles et vit maintenant dans les mots. Pas de mémoire d'outre-tombe. Pas de refrain d'outre-pays. Somnolence acquise, il n'y a aucun pas à franchir. Les lèvres s'epuisent à la prostituition et le voile ne se gonfle pas de sueur. Un ventre à franchir. Une sépulture à fleurir. Petits mots tombés, ne devraient pas s'acclimatiser, ne devraient avoir aucun lien avec le métro, les usines, les us et les costumes, quoique résultant de ce que ces murs ont créé. Le fond est magnétisé par le mur, cette forme. Le fond est anéanti, equivoque, estompé.

revisão da matéria dada [1]




Luís Sousa Ribeiro ~ Antigos e novos ensaios de gnosiologia predatória


capa de João Bicker
colecção O vermelho e o negro 4
Fenda 1994
[1000 ex]

Dentro de mim existe um espaço; não só entre mim e mim mas também no interior de cada mim.
Nele movem-se pessoas; não se movem apenas, pois cada uma tem o seu trabalho, família e interesses. Há-as bastantes quase como pessoas, mas muitíssimas mais existem como esboços de pessoas; quero dizer como retratos apressados ou como minuciosos estudos anatómicos.
O que é curioso neste lugar é que não só as pessoas-quase-pessoas e os esboços-de-pessoas são dotados de raciocínio, desejo e intenção como ainda o são quaisquer elementos dos seus corpos - ouvido, pé, olho, etc. - uma vez isolados.
Devo mesmo acrescentar, vencendo a minha estupefação, de que as mesmas características humanas residem e se manifestam em qualquer outro dos objectos deste espaço - copos, cadeiras, casas, etc. - de que estas gentes se sirvam no seu dia-a-dia.

Blaise Pascal ~ Discurso sobre as paixões do amor


tradução de Miguel Serras Pereira
posfácio de José Manuel Heleno
design de João Bicker
Fenda, 2006

O homem nasceu para o prazer: sente-o, não há necessidade de outra prova. Segue pois a sua razão ao dar-se ao prazer. Mas muito amiúde sente a paixão no seu coração sem saber por onde terá ela começado.
Um prazer verdadeiro ou falso pode preencher de igual maneira o espírito; pois que importa que esse prazer seja falso, contando que estejamos persuadidos de que é verdadeiro?
(...)
Em amor um silêncio vale mais do que uma linguagem. É bom ficarmos interditos; há uma eloquência de silêncio que penetra mais do que saberia fazê-lo uma língua.
(...)
Tiraram a despropósito o nome da razão ao amor, e opuseram-nos sem bom fundamento, porque o amor e a razão não são mais do que uma e a mesma coisa. É uma precipitação de pensamentos que se inclina para um lado sem bem examinar todas as coisas, mas é sempre uma razão, e não devemos nem podemos desejar que seja de outro modo, porque seríamos então máquinas muito desagradáveis. Não excluamos pois a razão do amor, uma vez que ela é dele inseparável.

Fernando Gandra ~ O sossego como problema ~ peregrinatio ad loca utopica


design de João Bicker
Fenda, 2008

A modernidade inventou o ruído? Não propriamente: universalizou-o.
Ele está nos telefones que tocam, nas ambulâncias que urgem, nas televisões que anunciam, nos alarmes que previnem, nos jornais que titulam. São os sinais por onde passa a "ideologia da comunicação". Todos existem porque ouvem, cada um impõe-se porque fala. A modernidade transformou o homem num lugar de trânsito de mensagens que nunca param. Daí que a força indicativa da palavra, que a energia vinculativa do discurso se tenha, por inflação, desacreditado.
Desapareceram as zonas de silêncio onde habitava a palavra de honra. Deixaram de se poder avaliar as consequências da palavra dada. Aí radica a constatação de David Le Breton: "a dissolução mediática do mundo conduz a um ruído ensurdecedor, à equivalência generalizada do banal e do horrível que anestesia os sentidos e endurece as sensibilidades". E assim se abriu uma hemorragia discursiva que começa na velocidade elocutória e logo acaba na sua fulminante vetustez. O sistema é ligeiro porque lhe falta o peso, severo e prudente, do silêncio.
Mas se a modernidade generalizou o ruído, foi também ela que politicamente impôs o silêncio por vezes em modalidades, digamos assim, inauditas. Sabemos hoje, sabemos penosamente hoje, que o silêncio pode ser a profecia do mal absoluto. De facto, todas as ditaduras começam por matar a palavra para depois se apropriarem do seu sinistro monopólio. É por isso que todos os movimentos de libertação se iniciaram pela reivindicação da sua universalidade pela ocupação imediata das estações de rádio e televisão procurando multiplicar as vozes agora festivas e caóticas. Ao silêncio hostil, ao silêncio de Estado, seguiu-se o ruído acolhedor, cheio de promessas messiânicas.

Carlos Mota de Oliveira ~ Livro das coisas santas


capa de João Bicker
Fenda, 1995
[600 ex]


MARTINHO IV (1281-1285)
«Excomungou vários
adversários políticos»

Logo no início da sua carreira religiosa, disse a um frade:«Suma-se da minha cela, senão rebento-lhe as ventas!» mais tarde, nomeado guarda dos selos reais, ameaçou S. Luís: «Suma-se do meu gabinete, senão faço desaparecer os sinetes e as chancelas!» E ainda legado do Papa Gregório X, ministrou um arraial de bordoada a um indefeso ministro de França!
Já eleito Papa, corria o ano de mil duzentos e oitenta e um, aconselhou o Rei de Aragão: «Suma-se depressa dos meus olhos, senão deponho-o!» E outras vicissitudes se seguiram. Só nunca ninguém entendeu a afeição que sentia por Carlos de Valois. Se um corava, o outro suspirava. E se o outro segredava, logo ele escutava!
Sabiam que a alma de cada um vivia no peito do outro, dizia-se em Perusa, no ano em que o primeiro faleceu.

Carlos Mota de Oliveira ~ Nove poemas de casa e três do mundo


design de João Bicker
Fenda, 1998
[600 ex]


O frio

O frio
na Igrejinha
quer lá saber!

E ameaça:
Não há
casa

onde
não entre!

Eu nada
digo

e adormeço
com nove

medronhos
e a pistola
na mão.

Marc-Ange Graff ~ menos 273 poemas


revisão técnica de Laura Lourenço
capa de João Bicker
Fenda, 1996
[600 ex]


Vigiador, ele inventa ardis, deficiências. Pretende cifradas vias indiferentes, que povoa com calvários e amoras. Arranja reclusões pacíficas, um cosmo resignado, uma chuva vulgar.

A gávea e a floresta por fim tornaram-se-lhe frias, sombrias e virgens, não tem recurso a sua dureza. Mas está lá um reinado, a autoridade dum ceptro, uma vida silenciosa e grave, signos, fermentos.

Entesa-se ali, no encoberto dum céu pressentido, o arco ilusório do gelo e da seiva, a ventura nunca advinda.

Escolherá o ir, a sua dúvida, insígnias depostas.

Marc-Ange Graff ~ Trois mantiques / Três vaticínios


tradução de Laura Lourenço, revista pelo autor
colecção A Parte Maldita, 1
Fenda, 1983
[250 ex]


BAGAGENS

Os mistérios que se dá a pastar

(esta árvore
é pinga à beira do copo
quereria
que secasse ignorada

os passos
são tambor de risos
quero-os
perfurados por longos corvos-marinhos)

os mistérios que ele fluíu
do fundo de chagas perenes
seus cavalos murmurados pelas ervas

e outros tantos
adormecidos à sombra no seu solar
seu covil de genebra

***

Nunca mais terá ele vergonha
das epilepsias e portulanos seus
em marcas circulares
no cais encerado da mesa.