...editora fenda... fenda edições, 30 anos no arame

Arquiduque Alexis Von Gribskoff ~ O Doge


(capa da 2ª ed, revista e aumentada)
desenho gráfico de Mário Feliciano
colecção Fenda Luminosa
Fenda, 1998
[1100 ex, dos quais, 200 numerados e assinados pelo autor]


Estive ao cuidado de um religioso disfarçado. Ostentava com relativa elegância um cinto com punhal; no seu chapéu li uma inscrição gótica, impensável num homem de oração e agora de aparência devassa.
Tinha mãos secas e ágeis e às vezes deixava escapar um pouco do seu segredo. Cheguei a surpreender os seus gestos sacerdotais e vi então com toda a clareza a arabesca finura da sua elevação litúrgica. Entoava o Cântico dos Cânticos e a curva do seu olhar lembrava-me a imagem do meu santo da Boémia.
Sei que passeava com uma eslava burguesa e alta, com quem discutia a origem dos morangos.
Fui com ele até muito longe. Era um dia de sol e a sua leve inscrição ocultava algo de sinistro. Disse-me afinal:
«Eu sei que não somos todos iguais».
Pegou-me na mão e continuou a caminhar. Estivemos durante muito tempo a ouvir o silêncio amigo das coisas. Passaram quatro dias.
De vez em quando dava-me morangos, que eu sabia provenientes da mulher que ele amava e de quem começava a ter saudades.
Na tarde do quarto dia o seu silêncio tomou dimensões mais estranhas e a sua figura alterou-se muitíssimo. Julguei que teria escolhido o momento para me revelar o seu segredo. Mas era ainda muito cedo.

Jorge Henrique Bastos ~ A Idade do Sol


capa de João Bicker
Fenda, 1998
[600 ex]


Um seixo

Porque repousa em ti
a grafia marítima das noites,
agrilhoas o músculo das areias insondáveis
e luzes revoltas do abismo fundo
dançam ocultas no teu corpo.

Naufrágios e prodígios,
e vertigem helénica e o olhar dos suicidas
gravaram em ti
o aceirado canto que concentras,
túmulo da mitológica palavra.

Sabes agora quanto vale um seixo:
ele guarda a fúria das marés.

Inabalável
sobre a madeira
renuncias o destino
a escandir outras tormentas.

Com peixes na constelação do sexo

...........inundas-me

Gustavo Sumpta ~ Escola de Cortadores


desenho gráfico de Mário Feliciano
Fenda 1998
[550 ex]


Sucesso

O Homem, no limite, só atinge a integridade na passagem à loucura, ao suicídio. Quando a contradição se torna insustentável, rebenta.
Sucesso sempre se associara aos fenómenos colectivos e às palavras arrebatamento e garfo, que sintetizavam o seu universo estático emocional. Já não acreditava no mercado da arte, odiava comboios.
Sucesso sabia que o destino, o seu destino, era rebentar. Obstinado, encontra a mais valia, salda todas as suas dívidas. Procurou o primeiro comboio cultural, comprou um bilhete de segunda, e estendeu-se ao comprido, entre os dentes e a locomotiva.
Uma falha humana fez com que o seu corpo, as duas metades em que ficara, fossem transferidas para hospitais diferentes.

Gil de Carvalho ~ Tarantela & Viagens


capa de João Bicker
Fenda, 1998
[600 ex]


Na Serra Algarvia

Cadências explodem preste
De seis e oito
A manhã.
Tardios invasores deste Verão,
Para quem o travejamento - se bem
Que de canas, sobrepostas (quanta
Fumarada no ar), é uma diversão mais.

Importa aceitar as coxas tão lisas
Da rapariguinha fazendo inocente
Uma oferenda, típica do extremo
Sul, já africana.

Uma lata faz vibrar o pequeno
Cântico, mas longe. São recipientes
Que deixam sair a mão, cinzento fresco,
Mesmo uma oração - artesanal.

A ganhar quadrados de tectos mais baixos
Vedados p'la atracção recíproca:
A altura, os costumes, a idade - nora
E alcaçuz. A fábrica de alfarroba.
Fútil, um bupreste.

Quem me dera entrar.

Jean-Philippe Toussaint ~ O Banho


tradução de Luís Nogueira
capa de João Bicker
Fenda, 1990
[1000 ex]

9) Eu envergava roupas simples. Calças de tecido bege, camisa azul e uma gravata lisa. Os tecidos favoreciam tanto o meu corpo que quando estava completamente vestido, parecia dirme e poderosamente musculado. Estava deitado, descontraído com os olhos fechados. Pensava na dama de branco, a sobremesa, uma bola de sorvete de baunilha sobre a qual se estende uma camada de chocolate a ferver. Há semanas que reflectia sobre isso. Sob o ponto de vista científico (não sou guloso), via nessa mistura um indício de perfeição. Um Mondrian. O chocolate untuoso sobre a baunilha gelada, o quente e o frio, a consistência e a fluidez. Desiquilíbrio e rigor; exactidão. O frango, pese embora toda a ternura que lhe voto, não sofre comparação. Não. E estava já a cair no sono quando Edmondsson entrou na casa de banho, rodopiou e estendeu-me duas cartas. Uma delas vinha da Embaixada da Áustria. Abri-a com um pente. Edmondsson, que lia por detrás do meu ombro, apontou o meu nome no convite. Dado que não conhecia nem austríacos nem diplomatas, disse que provavelmente se tratava de um engano.

Leonel Moura ~ Robotarium


Livro profusamente ilustrado
para documentar projecto realizado
em vários locais de Vila Franca de Xira.
Projecto de Leonel Moura
com Luís Sanchez Carvalho,
Profico, Idmind e Carlos Nogueira
english version de Alexandre Rodrigues
Fenda 2007

O Robotarium X é uma ideia forte com uma produção simples. Criar um espaço fechado, bastante exposto ao sol, no interior do qual possam "viver" um conjunto de robots autónomos. Tomando por modelo o aquário ou o jardim zoológico, tratou-se de construir um espaço similar dedicado à vida artificial. Um zoo para robots portanto.
Para o interior fabricaram-se, de raíz, vários habitantes robóticos dotados da maior autonomia possível. Para a estrutura envolvente concebi uma forma singular, construída em vidro e aço, baseada num dos sólidos de Johnson designado por Bilubirotunda.
(...)
De modo a reforçar a ideia de nova espécie atribuí a cada tipo de robot um nome em latim. Nasceram 14 espécies, num total de 45 indivíduos, assim nomeadas: Acrorhinomorpho, Araneax, Bilurosequor, Bucinaderm, Cerahetero, Cursovigilo, Pendeopseudosaurus, Procedofrons, Protopedis, Reptumpacatus, Robotapondera, Superinflatus, Techmuris e Zoid.

Leonel Moura ~ Anos 70


Anos 70 ~ Séries Fotográficas
Livro editado por ocasião
da exposição de Leonel Moura
na Galeria Visor, Valencia
entre 24 de Outubro
e 28 de Novembro de 1997.
Realizada em colaboração
com a Galeria Quadrado Azul, Porto.
design de João Bicker
Fenda, 1997
[500 ex]

Lugar comum do discurso moderno e contemporâneo sobre a representação do homem e da sua sociedade no século XX, a fotografia revela-se afinal um objecto decepcionante. Desde logo pela generalização da banalidade. Não havendo hoje nenhum recanto da realidade ou das vidas correntes, que não tenha sido reproduzido em múltiplos registos mecânicos e químicos, sem que se perceba a utilidade prática de tais exercícios. A começar pela manifesta incapacidade da revelação fotossensível em produzir realidade e consciência das poses e dos actos. Afinal, uma pessoa, sóbria e lúcida, ao mirar a sua própria imagem fugaz num bocado de papel ou numa reprodução tipográfica, não pode deixar de se sentir afectada pela mais profunda tristeza e melancolia. Na dupla constatação de que perdeu a vida e de que a sua própria existência nada mais é do que um acumular de instantes profundamente irrelevantes.

Lançamento de "Este Frio e Outras Histórias de Amor" de Paola D'Agostino




20-01-2012, às 20h, no Teatro A Barraca-Cinearte
[Largo de Santos, 2 - 1200-808-Lisboa]

O livro será apresentado por Rui Lagartinho. O actor Nilson Muniz lerá excertos da obra. Durante a sessão, decorrerá uma prova de vinho Thyro. Editora: Fenda. Tradução do Italiano: Miguel Serras Pereira

The reports of my death are greatly exaggerated ~ Entrevista a Vasco Santos




Veja-se uma imperdível entrevista a Vasco Santos no blog Tantas Páginas

Miguel Serras Pereira ~ O mar a bordo do último navio


design de João Bicker
Fenda 1998
[600 ex]


Alternativa

...............................................para o Almeida Faria


Achar-te por acaso a meio da tarde
na livraria de esquina de uma rua
onde nunca sonharia que parasses

Conter a tempo o frémito do susto
(não sem deixar porém que o suspeitasses)
até que ao fim de uma hora ou talvez duas

nos levasse à tua cama o mesmo lume
sem sabermos ao certo por que outra arte
de acordarmos dos anos que perdemos

de só quase desastre em já desastre
(espelhos mortos-vivos de nós mesmos
nem casuais sequer nem necessários)

E ensinar-te por fim os tons da caça
(quem sabe se volúpia se esconjuro
da lembrança ao volver-se juramento?)

da flauta com que atraía ao lusco-fusco
ondulando o vagar da tua ausência
a impaciência das corças de passagem

no vento a que te espero enquanto é tempo

Amadeu Baptista ~ As Passagens Secretas


capa de Manuel Rosa
hors-texte de Nelson Rodrigues
colecção styx/2
Fenda 1982
[500 ex]


Querem fazer de nós nomes sem qualquer rosto, pedaços
de múltiplos frios e múltiplas tragédias, mas uma árvore
preenche os espaços que nos separam. A salvação

é um regato nas núvens, o exercício de um gesto, a macia magia
que há nos corpos, está no sonho, irrompe

da manhã.

Acordas, beijas-me. A árvore, o seu poder,

bendita seja.

João Damasceno ~ Retrato do artista quando jovem aos pés da Raínha Santa Isabel


Fenda 1989
[600 ex]


Os ressuscitados

Coitados dos
ressuscitados

Na cova
come-se mal

aliás

parece mal comer

mas, na cova
só vermes

A dignidade dos Cães
A altivez dos Burros
que transportam em carroças
mortos que ressuscitaram
da vala comum

Que sorte têm
os mortos encerrados
nos túmulos de mármore