...editora fenda... fenda edições, 30 anos no arame

Klaus Wagenbach ~ A Praga de Franz Kafka


"um livro de leitura e viagem"
tradução de Lumir Nahodil
capa de João Bicker/FBA
Fenda, 2001


O casamento e a fundação do negócio dos pais coincidiram no tempo (1882) e no local: na mesma casa do lado norte da Praça da Cidade Velha onde foram celebradas as bodas (Hotel Goldhammer), Hermann Kafka fundou o seu comércio de galantaria, de início em regime de venda a retalho e como 'loja de rua'. Dessa casa só chegou até nós um quadro (v.p.74). Logo em 1887 a loja mudou-se para um local da vizinhança igualmente vantajoso, a casa dos Reis Magos, onde se manteve até 1906. Era portanto ali que o filho podia assistir às saídas do pai, muito antes de a famíla também viver nessa casa:

A loja. Em princípio, ela deveria ter-me dado alegria, especialmente na minha infância, enquanto foi um negócio de rua. Era tão viva, iluminada à noite, viam-se e ouviam-se tantas coisas, podia-se ajudar com aplicação nisto e naquilo, mas sobretudo admirar-te pelos teus magníficos talentos comerciais... No entanto ouvia-te gritar, ralhar e bramir de tal modo que, segundo a minha opinião daquele tempo, não havia no mundo inteiro nada de semelhante. E não te limitavas a ralhar, mostravas ainda outras formas de tirania. Quando, por exemplo, varrias do balcão, com um gesto brusco, mercadorias que não querias que se confundissem com outras... Ou aquela frase que não te cansavas de repetir, relativamente a um caixeiro doente dos pulmões: 'Que estique o pernil, esse cão doente'. Dizias que os teus empregados eram os teus 'inimigos pagos', e eram isso mesmo, mas antes ainda de se o terem tornado, tu parecias ser inimigo deles, o 'inimigo pagante'.

J. -B. Pontalis ~ Entre o sonho e a dor


tradução de Miguel Serras Pereira
capa de João Bicker/FBA
Fenda, 2001


Freud, numa das primeiras definições que deu do recalcamento, achou possível dizer dele que era uma «falha de tradução». Que diremos, assim, da própria tradução necessariamente em falha, a não ser que se arrisca sempre a instalar um acréscimo de recalcamento? Pior ainda: um duplo recalcamento, o da língua materna do autor e, igualmente, da do tradutor.
Todo o tradutor está consciente do risco, ou devia estar.Oscila sempre entre um «traduzir demais», marcado pela preocupação da legibilidade e do correctamente dito, e um «traduzir de menos», colocado sob o signo da literalidade, da fidelidade absoluta ao texto original. No primeiro caso, entende submeter-se apenas às exigências da sua própria língua, ou até do seu próprio estilo; no segundo, quer obedecer apenas à língua e ao estilo do autor. Transpor ou decalcar? De facto, seja qual for a opção assumida, o tradutor é o agente de um dito de outra maneira: o próprio copista, que pretende apagar a sua intervenção, deforma. Afinal de contas, porque seria o tradutor o único a escapar às astúcias do inconsciente? Mas é difícil admitirmos que a operação de traduzir se dê sem perda, ou seja, castração. Para consentirmos na perda, precisamos de prever que dela algum ganho possa resultar.

Eileen MacDonald ~ Matem as Mulheres Primeiro


tradução de Pedro Serras Pereira
capa de Secretonix
Fenda, 2000


Pouco passa da meia-noite e a mulher de preto lá está outra vez, ali sozinha nos arrebaldes da cidade. Assim que começa a apedrejar o jipe dos militares, irrompem focos luminosos no escuro do céu e ouve-se o aviso do fogo de artilharia. A mulher desaparece. Passados dez minutos, quando tudo voltara à escuridão, reaparece e as pedras voltam a voar. Continua nisto durante duas horas. É a segunda noite que faz a sua demonstração solitária. Ninguém na cidade sabe quem ela é nem donde vem.

O céu azul parece estar repleto de objectos voadores - pedras e calhaus, uns catapultados por um perito com onze anos, outros debilmente arremessados por um pequeno titubeante. São lançados pneus em chamas, libertando um fumo acre que queima os olhos e o nariz. Os soldados retaliam com uma rajada de tiros e uma bomba de gás lacrimogénio. Toda a gente foge, mas um miúdo, com cerca de dez anos, é apanhado. Solta um grito lancinante quando um soldado lhe inflinge um violento golpe com um bastão de madeira, apanhando-lhe as costas e as pernas. Um bando de mulheres aparecidas sabe-se lá de onde, corre como as «Fúrias» na direcção do soldado que agarra o miúdo. Vendo-se cercado, o soldado, assustado, pára de bater no rapaz. Tenta repelir as mulheres que gritam todas elas pelo seu filho. No meio da confusão, uma delas arrebata-o e foge com ele dali para fora.

Ouvem-se tiros e berros no acampamento - os soldados estão aí. A mãe dá um pontapé no filho de oito anos, sentando-se absorta nas palavras que a irmã troca com o intérprete. O rapaz levanta-se de um pulo, corando, e desata a correr lá para fora. O intérprete explica: «Ela disse:'não tens vergonha? Vai lutar com os teus irmãos e irmãs'.»

Isto é a Intifada, a insurreição dos palestinianos, desde 1987, contra a invasão militar israelita do West Bank e da faixa de Gaza. Desculpar-se-á o facto de as pedras e os bocados de rocha, que constituem o grosso do arsenal dos guerrilheiros, não poderem ser classificados propriamente como armas de terror - especialmente quando se enfrenta um exército treinado e bem armado. As autoridades israelitas, porém, decretaram que qualquer pessoa que atire uma pedra a um soldado israelita está a ameaçar a segurança do Estado.

José Madeira ~ Camões Contra a Expansão e o Império


capa de Secretorix
Fenda, 2000


O que significa a mitologia é que os portugueses, que se dizem cristãos, pela sua acção se revelam pagãos e, como tal, toda a sua «gesta» fica deste modo condenada. Ao denunciar como falsa a mitologia, condena-se igualmente essa «gesta», constituindo esta denúncia um dos mais virulentos e significativos (porque estrutural) elementos da crítica à empresa narrada. O «hibridismo» a que nos temos vindo a referir, tema paralelo da confusão dos cultos, que trataremos em breve, explicita precisamente a obnubilação das consciências, a confusão que faz tomar por cristão o que não passa de idolatria, uma idolatria reiterada em toda a história de Portugal e da Europa. Mas vamos às provas.
A tese apontada há pouco, pela sua novidade e aparente contradição com todas as interpretações até ao momento produzidas, decerto exige uma demonstração mais detalhada. A sua justeza ficará, quanto a nós, convenientemente comprovada se se conseguir encontrar noutras partes da própria Obra de Camões expressão inequívoca do seu conteúdo, incluindo, obviamente, também Os Lusíadas. Começamos pela Lírica, pela simples razão de que foi por essa ordem que a investigação se desenvolveu. Igualmente esclarecedora será a perspectiva da mitologia ao nível dos antecedentes - tantas vezes invocados a título de «influências» - fornecidos pela tradição clássica, incluindo Platão, cristã, representada por Santo Agostinho, e humanista, com uma brave referência a Erasmo. O objectivo será mostrar que, também desse ponto de vista, a nossa tese sai reforçada, pois a atitude que atribuímos ao Poeta se harmoniza perfeitamente com uma tal tradição.

Eduardo Dâmaso ~ A Invasão Spinolista


capa de João Bicker
sobre pormenor de fotografia de Alfredo Cunha
Fenda, 1999
[2000 ex]


Porque a história, seja ela qual for, grande ou pequena, de um homem ou de um país, não deixa de ser a expressão de uma luta da memória contra o esquecimento, é importante contá-la. É a melhor maneira de preservar os traços caracterizadores da identidade de um povo. Contar as suas histórias é o instrumento ideal de combate a um atávico sonambulismo que marca a relação dos Portugueses com a história contemporânea de Portugal, um país onde a criação, seja ela literária, cinematográfica ou o próprio jornalismo, quase só esporadicamente se aventura nos meandros do passado.
Mas a essa espécie de alheamento colectivo também não é indiferente o manto de silêncio que envolve alguns dos episódios mais marcantes da vida nacional, depois da revolução de 1974. Há testemunhos que não se recolheram nem se sabe se alguma vez será possível obtê-los. Quantos anos terão de passar ainda para que as estórias da história se possam contar de alma limpa e aberta ao futuro? Quantos anos terão de passar para que os mistérios que permanecem sofram a natural erosão do tempo? Que país é este que deixa os pedaços dessa história ao sabor de cobiças ou temores privados, consentindo que os melhores repositórios e tempos que merecem uma catarse colectiva ou uma expiação de complexos de potência colonial - ou nem uma coisa nem outra, tão-só ser contados às gerações vindouras - sejam inutilmente perdidos ou devassados sem critério?

em 2006 era assim

Edgar Prestage ~ D. Francisco Manuel de Mello ~ Esboço Biographico


capa de João Bicker
Fenda, 1996
[50 ex numerados de F01 a F50 +
450 ex numerados de 1 a 450]


Foi nos fins de 1637 que o povo da capital alemtejana se insurgiu contra as auctoridades, saqueando os cartorios, queimando os livros reaes que servião de registro aos direitos publicos, e libertando os presos da cadeia. Na apparencia os nobres fizeram o possivel para acalmar os animos, mas muitos entendião-se secretamente com os cabeças do motim, e assim como os Jesuitas, que erão altamente respeitados na cidade, «tacitamente contribuião ás esperanças de alguma novidade», na phase caracteristica do nosso auctor, ao passo que os Dominicanos abertamente favorecião a causa popular. Segundo a observação dos adeptos do Sebastianismo, erão por aquelle tempo chegados muitos dos signaes que havião de anteceder a libertação de Portugal do jugo estrangeiro.
Recebida a nova em Madrid, foi julgada sem importancia, mas os de Evora, gloriando-se das suas acções, começavão a entender-se com os povos vizinhos, e estabeleceu-se uma Junta revolucionaria, que governava debaixo do nome e auctoridade d'um doudo e «dizedor», o Manuelinho. Em pouco tempo o movimento tinha alastrado pelo Alemtejo, e em Villa Viçosa levantavão-se vozes que acclamavão o Duque de Bragança como Rei. Este, não julgando o momento azado (e teve razão) tratou de reprimir estas demonstrações inconvenientes, e estando impossibilitado por doença, fez sahir de noite pelas ruas o Duque de Barcellos, D. Theodosio, então da idade de tres anos, a fim de serenar os animos populares, o que conseguiu. Procurava a Princeza Regente Margarida atalhar a sedição, mandando varios emissarios a Evora, mas sem resultado, e perdidas as esperanças de abafa-la com meios suaves, tanto em Madrid como em Lisboa se foi introduzindo a pratica do castigo. Comtudo luctava-se com difficuldades grandes, porque o poder de armas em Portugal era pouco, e com esta certeza, crescia o numero e soberba dos inquietos.

António Cabrita ~ Arte Negra


colecção Fenda Luminosa, 16
dirigida por Vasco Santos
Fenda, 2000
[1100 ex]


I beg your pardon!
Passeios em Dante

1

A meio do Arquimarché, entre PêCês e Cêdês
Rom's - um rosto lacunar e prateado pelas quatro
línguas do garfo, sob o braço - pareceu ao poeta

que o poema o trepanava. Ia o sobredito leve
de sobrolhos, a tarde engatilhada em quatro taças
de verde e soube de repente que dentro em si

ainda abalos vários campeavam: «o sentido
é o lobo da palavra: faça-se a batida!»
Houvera um Virgilio-da-Guarda pelo desfolhar

das mãos ou por florestas de maçanetas e chips,
um sonho derradeiro que desferisse razões.
Mas a fé, a extrema fé, só gerara cucus e pensões

e na ala de graxas e sapatos, provido de polaróide,
afrontava agora a fera oval - o seu passado
de extravios que algemou ao menor dos círculos

todo o firmamento - e descobria-se tão iludido
como encurtado por um surto de facturas:
«O sentido é o lobo da palavra: faça-se a batida!»

Urgia ao poeta uma tesoura de poda.
A palavra já mergulhava no tinteiro o nervo exposto
incendiava por conta própria o medo o sabugo

e o nado-anjo. A palavra que emala ilhas
águas intermédias e cumula insónias, à luz
mais débil, fazendo regurgitar maremotos

e a estricnina, ria-se sem dó das suas últimas
conquistas: impostos sem atrasos, idas ao cinema
uma por outra travessia das fronteiras.

Até ao balcão dos queijos nada o sossegou.
E pior ainda entre laxantes, pranchas de surf
legumes e apalpa-folgas - o poeta já se via

esborratado na ardósia, à chuva e sem acinte,
à mercê das matizes mais avulsas e dos «amigos»
invisíveis que em perigos o mar excedem

e fazem dobrar todas as línguas.
Cismando na renúncia o vate suplicava
o arraso das gavinhas: à tona e sem remorso.

Mas abriam-se as cortinas ao amealhar
da sílaba, a cifra estreitava-lhe os pulmões:
«...o lobo da palavra - faça-se a batida!».

(...)

João Camilo ~ para a desconhecida


capa de Sem OI
colecção As Lágrimas de Eros, 9
Fenda, 1983
[1500 ex, 200 dos quais fora de mercado]


As crinas do vento

O vento: música ou murmúrio da árvore.
Encosta a obsessão à parede branca dos quintais.
Vento de mar? E jovem leva a nuvem.
Os sinos de bronze, o cimo das serras:
viver é brusco, tão incerto.
E a minha mão, desabituada de sentir que toca
e é gesto
e me deixa possuir,
a minha mão quer a janela aberta. O vento não tem,
não, não tem
crinas.
Nem as costas luzidias de cavalo ou égua.
Áspero,
vidro partido espetado na terra.
Os dentes de uma serra,
espaço de repouso e cume que agride.
Pôr a mão em tanto
e sem respirar
quando parecia que era tarde e apenas
hora de dormir?

António Pedro Pita ~ Está pronta a paisagem


as lágrimas de eros 8
capa de Todas Manas


Percorro o vidro
uma ausente transparência
o frio
o gume do sangue

Percorro o frio
uma opacidade ténue ingrata
um raro rosto de água e rápido
meu e de vidro

Percorro a transparência
o frio
Fica uma leve impressão
digital
um sulco que (se) desfaz perto do silêncio

Carmo Sousa Lima ~ Paisagem branca


capa de João Bicker
Fenda 1997
[500 ex]


.................................................................ao Jordi Savall
.............................................enquanto tocava Thobias Hume


os dedos da voz
rolam
em marés

o som
respira
pelo oval da sombra

pássaros
cegos de espaço
pairam
numa abóbada de silêncio

Viola da gamba
terno terno
Dragão