...editora fenda... fenda edições, 30 anos no arame

Ernesto Sampaio ~ Fernanda


(capa da 1ª ed)
capa de Mário Feliciano
desenho gráfico de Secretonix
Fenda, 2000


(capa da 2ª ed)


(capa da 3ª ed)


A Fernanda veio passar comigo a entrada no ano 2000. Vi-a viva pela última vez na noite de 3 de Janeiro. Um beijo morno de despedida: «Não te esqueças de cortar as unhas à cadela e de dar o 'program' aos gatos. Ah, e também não te esqueças de me ir esperar a Santa Apolónia no domingo, à hora do costume...» E lá seguiu para o Porto no carro do João Grosso. Retrospectivamente, a recordação mais impressiva que conservo da cena é a do olhar de tristeza da Rosa, a nossa galga, vendo a dona afastar-se. Havia entre as duas uma relação fortíssima. Aliás, sempre me surpreendeu o poder da Fernanda sobre os animais: a um olhar, a um gesto, sem levantar a voz, tranquilizavam-se, obedeciam-lhe cordatos. Eu, se mandar a Rosa ir numa direcção, é garantido que vai na direcção contrária...
Falei da relação fortíssima entre uma mulher e uma cadela, e bem sei que é abusivo atribuir a um animal algo de parecido com sentimentos humanos. Pois é... Mas cada vez que levo a cadela ao cemitério, e ela aproveita para se rebolar sobre as campas (a Fernanda está debaixo de um magnífico relvado, à inglesa, de campas rasas), sempre que chega ao sítio onde a dona está enterrada, pára e assim fica de focinho entre as patas, a escarvar lentamente a terra.
Agora, dormimos todos na mesma cama: eu, a cadela, o gato (Artur) e as duas gatas (a Fina e a Nina). Numa destas noites, os quatro animais ergueram-se súbita e simultaneamente e ficaram sentados, hirtos, a seguir fixamente com o olhar um ponto, para mim invisível, que se deslocava no espaço, enquanto eu sentia o rosto batido por um sopro gelado.
Disse que vi a Fernanda viva pela última vez na noite de 3 de Janeiro. Dois dias depois vieram anunciar-me que tinha morrido. No avião para o Porto não me saía da cabeça que se tratava de um engano, e estava ansioso por chegar, vê-la, desfazer o equívoco. Depois... a morgue, as burocracias, a entrada naquele quarto de hotel, a cigarreira e o livro abertos na mesa de cabeceira, o colar em cima da cama...

Peter Sloterdijk ~ Ensaio Sobre a Intoxicação Voluntária


Um diálogo com Carlos Oliveira
tradução do alemão de Cristina Peres
capa e orientação gráfica de João Bicker
Fenda, 1999


(...) Em meados dos anos 70, compreendi que o mito da revolução estava morto ou, para ser exacto, não o compreendi, cheirei-o: tinhamos entre nós um grande cadáver ideológico que começava a cheirar mal e os seus defensores também não cheiravam bem. O político seria a partir de então, e por muito tempo, um terreno sem esperança, daí até algo de novo não havia nada a esperar. Da revolução não permanecia mais que uma vaga nostalgia, o desejo de uma outra vida mais rica. Pode-se dizê-lo calmamente deste modo ingénuo porque mesmo que se dissesse de forma mais elaborada significaria o mesmo. Nós eramos obrigados a ter um outro tipo de análise, uma análise do desejo, a que chamavamos psicanálise - o que era uma designação errónea porque a psicanálise clássica diz que quem se insurge não tem razão, quando o que nós queriamos ouvir era que quem se insurge tem razão. O cadáver da revolução decompôs-se pouco a pouco até ao esqueleto e ali vieram à luz alguns radicais não redutíveis. Pôde ver-se, nesse momento, que no complexo formado pela revolução tinham existido três motivos ou figuras de base absolutamente diferentes, sendo cada uma delas autónoma e vivendo por si, mesmo se a figura ideológica na qual estavam englobados se decompôs. A primeira pedra, radical primeiro da grande revolução mítica é o Estado de direito burguês com o seu pathos formal e igualitarista. Mas, após 1945, já se tinha mais ou menos estabelecido entre nós que não estavamos exageradamente reconhecidos por tê-lo, não faziamos mais que tomá-lo como ponto de partida para exigir muito mais. Mas e este mais, o que era este mais? Para responder a esta questão é preciso conhecer ambas as outras formas de grande reviravolta. O segundo radical da revolução é a experiência individual do nascimento, a dramática ruptura da criança para fora do corpo da mãe em direcção ao mundo. Isto permanece latente e presente em cada indivíduo como cena primitiva constituindo a vanguarda das esperanças futuras de novas rupturas em direcção a condições de vida menos estreitas. A saída deste estreito canal original no qual tudo poderia já ter chegado ao fim: isto é o protótipo subjectivo da libertação...

Fiama Hasse Pais Brandão ~ Teatro - Teatro


capa de João Bicker
[livro reune as peças Poe ou o Corvo, A Rendição de Breda,
Eu vi o Epidauro (Sobre o Teatro)
, e Ensaio Mortal]
Fenda, 1990


1. Talvez eu queira dizer, neste espectáculo, o que Shakespeare já disse (nada menos). Que na vida há sempre uma certa margem de teatralidade, e no teatro sempre uma certa margem de vida. Algo pouco profundo. Um trompe-l'oeil, afinal. Valeria a pena dizê-lo, redizê-lo?

2. No teatro contemporâneo, quer dizer, na consciência moderna, é tão difícil fazer acontecer qualquer coisa simultaneamente com o diálogo - sendo este, exclusivamente, veículo de intensa expressividade egótica ou mundividente -, que recorri a uma espécie de trama policial revisteira, maneira visível e objectiva de fazer acontecer algo por fora.

3. E o final é óbvio. Depois do tiro, morre a atriz, fica a personagem. Mas qual personagem? Essa, a eterna, já tanto se modificou, no teatro do Ocidente, já tantas réplicas trocou com as outras... Essa transformou-se e transformar-se-á infinitamente, no Teatro, arte, como todas as outras, da transmutação.

[da introdução a Eu Vi o Epidauro (Sobre o Teatro)]

Patrícia Portela ~ Se não bigo, não digo


texto e desenhos de Patrícia Portela
desenho gráfico de Mário Feliciano
Novos Monstros, 5
Fenda, 1999
[400 ex]


Uma vez conheci o homem mais só do mundo.
Chamava-se Adão. Tinha uma maçã e uma solidão, mas nenhuma delas parecia ser grande companhia.
Não tinha pecados, nem jardim, nem vontade de comer. Para falar a verdade, não tinha mesmo nada para fazer e por isso se aventurou a uma grande jornada, onde conheceu muitos homens e mulheres, todos com umbigo. Foi assim que descobriu que não era real.
A solidão de Adão tinha directamente a ver com um buraco na barriga que lhe dizia que tinha sido cozinhado e não parido.
Decidido a tornar-se real, Adão procura uma loja de penhores.
- Boa tarde, eu gostaria de comprar um umbigo para disfarçar o meu aspecto pouco real!
O vendedor diz que só tem um. 75 anos mas em muito bom estado. Pede 2000 contos. Adão só tem uma maçã. O vendedor não faz negócio.
Adão pensa e tem uma ideia.
- Dou-lhe a minha costela!
Mmmmmm... o mercador tem uma churrascada logo à noite... Aceita.
Adão está contente e o traficante também.
Ambos celebram toda a noite e passam as 10h, as 11h, e à meia-noite... Trrrrrrrrrrriiiiiiimmmmmm, quando todas as abóboras se transformam em contos de fadas, a costela transforma-se em Eva.

Alface ~ A prima fica por cima


ilustrações de Pedro Proença
desenho gráfico de João Bicker|FBA
Fenda das raparigas, 11
Fenda, 2001
[1100 ex]


Seria talvez de bom tempo 1 explicação. Como quase sempre.
Ala explicou à família, naquele seu invertido jeito aristocrático, que vinha passar uns tempos com eles por especial deferência pela avó Rosa (Cf. Avó não pise...).
A saudosa velhota vendera-lhe a teoria que 1 presença feminina iluminaria aquelas criaturas. A serigaita da neta faria o serviço a contento, achava a velha.
Para a jovem Ala foi mudança mesmo a calhar pois os pais acabavam de expulsá-la definitivamente de casa. Sem apelo nem agravo. Rua! Vá lá saber-se porquê.
Vitório Branco concordou que aquele seu irmão (cuja existência havia esquecido) exibia maus fígados, mas daí a correr com uma filha de tenra idade vai uma certa distância.
Ou não?
Os gémeos condoeram-se com a infelicidade da prima e apenas Nino se manteve insensível às desgraças que ela deu de desfiar: mendiga por conta de um cartel de pedintes cariocas, menina-bala num circo ambulante russo, major do exército infantil tailandês e por aí fora. Tretas à dúzia que a família Branco engolia embasbacada.
Pobre priminha! ecoaram gémeos & pai, enquanto Nino se levantava. Vou dormir. E lá foi.
Vexada pelo desinteresse do gordo, a bela Ala não pôde impedir-se de ficar logo apaixonada por ele, provocando na vivenda 1 fulminante ataque de ciúmes que até fez cair a pintura toda do tecto.