...editora fenda... fenda edições, 30 anos no arame

Alface ~ Um pai porreiro ganha muito dinheiro


ilustrações de Pedro Proença
design de João Bicker
Fenda das raparigas, 2
1ª ed, Fenda 1997
2ª ed, Fenda 1998
3ª ed, Fenda 2001
[1000 ex]


As incursões em busca de fundos só ocorriam, recorde-se, quando o Sr. Branco era despedido e havia que fazer pela vida. Talvez esta circunstância justifique algum prazer punitivo com que tais acções eram encaradas pelo agregado familiar.
Entende-se tal sentimento e perdoa-se, dado que a vida de viúvo não é um mar de rosas.
E tanto assim é, que, no regresso ao lar, se tornavam inevitáveis os abraços de regozijo aos heróis carregados de notas.
Como homem habituado aos revezes da fortuna, o Sr. Branco comprava umas prendas para os vizinhos, abastecia a despensa e o frigorífico, dava uns doces ou brinquedos às crianças e, cheio de esperanças e ilusões, atirava-se à rua novamente atrás de emprego condigno.
Nestes tempos difíceis nem sempre a tarefa era coroada de êxito, mas ele não desistia. Sinceramente acreditava no valor duma educação que preza o suor do rosto como se de sal para o pão se tratasse. Podia passar meses nisso mas não desistia e encaixava recusas com trejeito compreensivo que constituía a sua imagem de marca.
Os miúdos não se ralavam, era a maneira de o pai andar ocupado. Restava-lhes a escola e a lida da casa com fraterno espírito de entre-ajuda, fruindo a rotina como só os verdadeiros aventureiros se atrevem.
Para Nino e para o pai aquele período de tréguas traduzia-se numa benção retemperadora das emoções que provocavam em outras terras e pessoas. Nunca, como em momentos que tais, a tranquila vida da família lhes sabia tão bem. O oásis durava até ao dia em que um felicíssimo Sr. Branco lhes aparecia com novo emprego. Fosse num armazém, nas obras, como estivador de porto, como estafeta, fosse como escriturário ou servente de limpeza, a alegria do pai era sempre genuína e só comparável ao cepticismo dos rapazes, que de antemão conheciam o final da história.
Apesar de previsível, a vida deles admitia excepções. Em rigor, 3 excepções. Todas 3 com o mesmo nome: férias.

António Pocinho ~ Os Mistérios de Casimiro


desenho gráfico de João Bicker
Fenda 2002


O Caminho Marítimo Para as Raparigas

(...)

Há algum tempo que não tenho nenhuma namorada. Não sei se é por causa dos meus ténis não serem de marca ou se é por às vezes me pôr a tirar macacos do nariz. A minha irmã contou-me que as miúdas não gostam de miúdos fedorentos, e eu confesso que às vezes não me apetece tomar banho.
Podia haver uma disciplina na escola para os rapazes aprenderem a arranjar namoradas. Não se davam negativas e havia aulas teóricas só para rapazes, porque as raparigas não precisam. A minha irmã, que é mais velha do que eu, arranja sempre o namorado que quer. Eu acho que vou passar a fazer como o namorado da minha irmã e esperar por uma miúda que saiba aquilo que quer.
Ultimamente, quando tento arranjar uma namorada, ou elas já têm alguém, ou acham que eu sou muito novo. O que acontece é que as miúdas me acham muita piada por calçar peúgas de cores diferentes e por estar sempre a fazer perguntas malucas nas aulas de história. Mas depois, quando as convido para sair à noite ou ir ao cinema , dizem que vão à natação ou que têm um jantar em casa da avó. É claro que não posso ir jantar a casa das suas avós, porque não gosto de pataniscas de bacalhau com arroz de feijão, mas passei a frequentar a piscina. Às vezes dou um mergulho e apareço-lhes de surpresa à tona de água, o que acaba por ser contraproducente, que é uma palavra que aprendi ontem na aula de educação visual.. Ficam assustadas e chamam-me "estúpido", um nome que as raparigas costumam chamar aos rapazes.

António Pocinho ~ Quanto custa criar uma sardinha


ilustrações de Pedro Proença
capa de João Bicker
Fenda das raparigas, 9
Fenda 1999
[1200 ex]


Mal sabiam do que se tinha passado, os peixes todos iam acorrendo a casa do Tamboril e da Cachucha, manifestando a sua solidariedade e oferecendo a sua ajuda para o que desse e viesse. O primeiro a aparecer foi o Peixe-Aranha. Como todos sabem, o Peixe-Aranha (aquele peixe em que, às vezes, os humanos se picam, na praia) não é comestível e, portanto, não tem qualquer preço no mercado. Por causa disso, o Tamboril tinha-lhe um grande desprezo, maior ainda do que aos peixes mais baratos, como o Carapau. O facto de o Peixe-Aranha ter sido o primeiro a aparecer deixou o Tamboril muito comovido. Abraçou-se logo a ele e até chorou. As lágrimas dos peixes não são líquidas, são gasosas. São pequenas bolhas de ar que se soltam dos olhos.
- Ó meu amigo, e eu que não lhe dava valor nenhum. De facto, o nosso preço não é aquele que nos dão no mercado. É o nosso carácter. E você demonstrou hoje que devia valer pelo menos 9 995$00 o quilo. Você é o peie mais caro que encontrei até hoje.
- O que lá vai, lá vai. O que é preciso é trazer de volta as suas sardinhas.
Logo a seguir, chegou o Carapau e então aí é que o Tamboril já não sabia o que é que havia de fazer com tanta emoção. Não parava de se desculpar:
- E eu que não vos tinha em bom preço. Vocês hoje estão a dar-me uma grande lição. Isto é uma autêntica revolução nos preços. Vejam lá se o Linguado, um peixe de 3 865$00 o quilo, aparece por aí! Não aparece...
Valia mais que o Tamboril estivesse calado porque o Linguado apareceu mesmo. E não só o Linguado... o Salmonete, a Solha, o Chicharro, a malta do Clube dos Cabeçudos, o Polvo, a Moreia, o Choco, a Faneca e o Faneco, a Lula, uma delegação da Academia das Ciências que não parava de dizer disparates, enfim, já não havia lugar para sentar tanta gente. Não fosse estarem todos ali reunidos por uma infelicidade, aquilo até parecia uma festa. E era de facto uma festa que todos esperavam quando as sardinhas voltassem.

João Rosas ~ Qualquer pessoa dá um homicida qualquer


ilustrações de Pedro Proença
capa de João Bicker
1ª ed, Fenda 1996
2ª ed, Fenda 1997
3ª ed, Fenda 1997
[2000 ex]


Tenho uma má notícia: adormeci a meio da festa. Quando nós chegámos, os rapazes ficaram todos lixados, inveja. Mas as gajas, não; tiveram uma reação que eu apreciei bastante; disseram logo: - Olha o Sandro! Olha o Sandro! - falavam baixo, mas eu sou como o K.I.T.T., o que quero ouvir, ouço. Uns minutos depois, o Ivar, cheio de ciúme, veio contar-me que elas tinham dito que eu era um palhaço esfomeado. Claro que não acreditei. O momento alto da noite passou-se antes de eu adormecer. Tudo aconteceu quando eu pedi para porem um disco do meu pai. Não sei porquê, mas recusaram. Como fiquei frustrado, fui comer. Dirigi-me com pés de lã à cozinha. Abri o frigorífico, e o paraíso da comida deparou-se à minha frente (ouvi esta frase num filme). Foi então que o mais belo ser humano à face da Terra (outra dos filmes), a Luísa, apareceu. O cabelo esvoaçava, as narinas abriam-se e fechavam-se; chamam-lhe BNT (bimba de nariz torto), mas ela não é bimba, e o nariz é a parte mais atraente do seu corpo. - Sai do frigorífico, meu grand'animal. És um palhaço nojento. Foi o meu record pessoal, em termos de manter uma conversa com a gata, 10 segundos. Foi um espectáculo. Mal cheguei a casa, fui ao forno, porque a minha mãe me tinha guardado um bocado de perna de borrego. Ela é a melhor mãe do mundo. O Porto joga hoje com o Leça (recém-chegado à primeira divisão). Vou começar a tomar banho duas vezes por semana, pois o meu pai disse que eu já estava a ficar um homenzinho e começava a cheirar mal. A partir de amanhã, vou fazer sempre uns exercícios antes de me deitar: 10 abdominais e 10 flexões.
Vi o Tenho Dois Amores com o Marco Paulo enquanto comia uma bolachas de chocolate que estavam escondidas no armário.

Patrícia Portela ~ Operação Cardume Rosa


texto e ilustrações de Patrícia Portela
editado para o Teatro O Resto
desenho gráfico de João Bicker
Fenda 1998


Nossa Senhora do Cagaço - a própria, gentilmente cedida para uma série de "aparições"

Boa noite, chamo-me Maria, muito prazer.
Hoje deixei-me dormir, perdi o comboio para a procissão e achei que era um bom dia para me confessar.

Fumo, fumo sim senhor e travo, fumo bem.
Nunca fiz jejum na Páscoa, adoro enchidos e bebo licorzinhos; ando descalça mas não me ajoelho assim com tanta frequência, praguejo, praguejo sim senhor, adormeço na hora do terço, vou a Fátima de autocarro, nunca a pé, não conheço Santiago de Compostela, adoro vermelho, adoro toucinho do céu e sou uma voyer... a minha alcunha é Nossa Sra. do Cagaço, porque há muito que vivo cheia de medo que descubram a verdade.

Hoje queimei o almoço, perdi as chaves de casa no metro e achei que era um bom dia para me queixar.

2000 anos, 2000 anos...
Faz hoje 2000 anos que tive um caso com Gepetto, o carpinteiro. Dei à luz um boneco de madeira sem nariz.
Ai Gepetto, Gepetto, furaste-me o coração pelas costas e desde então só amo com corrente de ar... Fizeste-me mal Gepetto e por tua causa passei a vida a mentir... desapareceste-me assim, sem mais... Dizer ao meu filho este tempo todo que o pai era uma pomba...

(suspira) 2000 anos, 2000 anos... quanto tempo dura ausência...
Por tua causa chamaram-me de tudo... até de mala...
Foste-te embora sem adeus e deixaste-me virgem de 7 meses na aldeia.
Fui um sucesso... gravuras, baixos-relevos, medalhinhas, posters, postais, figurinhas de barro e de madeira, até pratos... Tanta história se fez à minha volta...